Objetivo 2.
Acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável
*Reportagem: Cristiano Pavini e Adriana Silva (fevereiro/2019)
Uma panela de arroz, meia dúzia de pães e um galão de água. Isso é tudo que Mirian dos Reis, 41 anos, tinha na geladeira de sua casa para o almoço de seus cinco filhos no último dia de janeiro de 2019. Moradora de uma favela na zona Sul de Ribeirão Preto, sua renda como catadora de recicláveis é de aproximadamente R$ 300 ao mês.
Segundo levantamento do Dieese (Departamento Intersindical de estatísticas e Estudos Socioeconômicos), uma cesta básica com todos os itens considerados essenciais para a alimentação custava em média R$ 470 em dezembro de 2018 em São Paulo. Mirian não tem, assim, o suficiente sequer para uma alimentação mínima.
Sua casa é feita com estrutura de madeira em uma área irregular e não possui dispensa para guardar os alimentos – que são, em sua maioria, doados por instituições voluntárias. Sem ajuda, ela e os filhos passariam fome.
O segundo Objetivo do Desenvolvimento Sustentável (ODS) propõe, entre outras metas, acabar até 2030 com a fome e “garantir o acesso de todas as pessoas, em particular os pobres e pessoas em situações vulneráveis, incluindo crianças, a alimentos seguros, nutritivos e suficientes durante todo o ano”.
Mesmo com os avanços das últimas décadas, a fome e alimentação precária ainda são realidades em Ribeirão Preto.
Realidades, porém, que estão longe dos olhos – e braços – do poder público.
No Sisvan (Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional), banco de dados gerenciado pelo Governo Federal com informações enviadas pelos municípios, consta que em 2018 a Secretaria Municipal de Saúde de Ribeirão Preto acompanhou o consumo alimentar de apenas 17% das crianças com menos de 2 anos e de 5,9% das com entre 2 e 4 anos.
O percentual de acompanhamento foi menor do que em 2017 quando, respectivamente, as taxas foram de 19,7% e 7,3%.
Entre as crianças de 2 a 9 anos, apenas 3 em cada 100 tiveram acompanhamento nutricional pela Prefeitura no ano passado.
Questionada pelo Instituto Ribeirão 2030 por meio da assessoria de imprensa, o governo municipal se negou a comentar os dados e não respondeu a outros 21 questionamentos – desde informações técnicas até sobre a existência de desnutrição no município.
Mesmo subnotificados, os dados acendem o sinal de alerta.
A prefeitura cadastra no Sisvam os hábitos da população, com base nos alimentos consumidos no dia anterior à entrevista realizada por profissionais da saúde.
Informações do Sisvam apontam que 28% dos bebês de 6 meses a 2 anos acompanhados podem não tido diversidade alimentar em 2018, alcançada com o consumo de 6 grupos de alimentos diferentes.
Isso significa que, no ano passado, ao menos 400 crianças nessa faixa etária podem não ter se alimentado corretamente. Isso considerando, apenas, aquelas acompanhadas de perto pelo poder público.
Na região do Jardim Zara, zona Leste da cidade, quatro em cada dez crianças de 5 a 9 anos monitoradas podem não ter comido feijão com frequência em 2017.
A unidade de saúde do bairro foi a única, da cidade, a realizar acompanhamento do consumo de feijão em mais de 25 crianças dessa faixa etária, segundo o Sisvan. Das 43 analisadas, 16 não comeram o alimento no dia anterior à avaliação da Secretaria da Saúde.
Nas outras unidades de saúde, o monitoramento foi ainda menor. Algumas cadastraram no Sisvan dados de apenas uma criança.
Além do Jardim Zara, no ano retrasado 21 unidades de saúde enviaram informações de consumo de feijão relativas a 72 crianças de 5 a 9 anos. Duas em cada dez delas não tinham comido o alimento no dia anterior à pesquisa.
Docente do Departamento de Enfermagem Materno Infantil e Saúde Pública da USP de Ribeirão Preto, Débora Falleiros de Mello explica que “a primeira infância, etapa que vai do nascimento até os seis anos de idade, é um período fundamental para o desenvolvimento humano, em termos físicos, cognitivos e socioemocionais”.
Débora ressalta que “nesta etapa da vida é muito importante garantir boa saúde, nutrição adequada, proteção contra ameaças e danos e oferecer oportunidades adequadas ao aprendizado”, afirmando que a dieta saudável tem como base o aleitamento materno (amamentação) e alimentação complementar.
“A vulnerabilidade social impacta na saúde e desenvolvimento das crianças, podendo acarretar em muitos problemas se houver estresse familiar, exposição à violência, abuso ou negligência infantil, insegurança alimentar e recursos limitados, tanto em domicílio quanto na comunidade”, afirma, pontuando que “experiências adversas comprometem múltiplos aspectos da vida atual e futura do indivíduo, como a aprendizagem, o comportamento e a posição socioeconômica que terá quando adulto”.
Imagens de crianças esqueléticas pela desnutrição causada pela fome não são mais frequentes no Brasil.
Segundo Dados do Ministério da Saúde, de 1979 a 1995, foram registradas 125 mortes por desnutrição de crianças de até 4 anos moradoras de Ribeirão Preto. De 1996 a 2001, 11 óbitos ocorreram. Depois disso, há registro de apenas dois casos nessa faixa etária (em 2010 e 2012), segundo o DataSUS (principal banco de informações de saúde do País).
Isso não significa, porém, que a alimentação está adequada.
Professor aposentado de Medicina da USP e especialista em nutrição infantil, José Simon Camelo Junior explica que até a década de 70 o Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto possuía uma enfermaria com leitos destinados apenas a pessoas desnutridas, principalmente pela falta de comida e amamentação adequada.
“Hoje, com a evolução de programas sociais e melhores condições socioeconômicas, bem como melhorias no saneamento básico, essa realidade mudou”, afirma, ressaltando que a desnutrição atual não ocorre mais pela falta de comida, e sim por questões secundárias – como doenças que prejudicam a absorção de alimentos. “São raros os desnutridos como naquela época”, aponta.
No ano passado, 116 crianças de 2 a 5 anos monitoradas pela Prefeitura de Ribeirão estavam com o peso baixo ou muito baixo para a idade. Entre as de 6 meses e 2 anos, 70 não estavam com peso ideal.
Na outra ponta, 833 estavam acima do peso nessas duas faixas etárias somadas.
Os números são subnotificados em razão da baixa taxa de acompanhamento do poder público municipal.
Especialistas apontam uma multiplicidade de causas para o peso irregular. Todas, porém, afetam principalmente as pessoas em situação de vulnerabilidade, com menor possibilidade de comprar alimentos nutritivos. Sem eles, a balança fica leve ou pesada demais.
“Atualmente temos mais alimentos disponíveis, mas não significa que todos são nutritivos. Os mais saudáveis podem ser, também, mais caros. O consumo de produtos pobres em nutrientes, mas altamente calóricos, leva à inadequação do peso”, explica José Simon.
O professor ressalta, também, que a alimentação precária da mãe na gestação afeta o filho.
A professora Débora Falleiros aponta que nos últimos anos o Brasil avançou nos indicadores de amamentação, mas o mesmo não aconteceu com a alimentação complementar.
“O cenário é de consumo de alimentos não saudáveis”, explica.
Segundo ela, “o consumo reduzido de cereais, hortaliças, frutas, carnes, ovos e leite e a alta ingestão de alimentos muito calóricos e pouco nutritivos já foram observados entre crianças pertencentes a domicílios com acesso limitado aos alimentos saudáveis, em comparação às crianças de famílias em situação de melhor acesso”.
Débora e José Simon concordam que a vulnerabilidade social e econômica são fatores que influenciam na alimentação das crianças e, portanto, em seu desenvolvimento.
O DataSUS (principal banco de informações de saúde do País) aponta que em 2015 (ano com dados mais atualizados na data de publicação desta reportagem), foram registradas 90 ocorrências de desnutrição em bebês com entre 13 meses e 2 anos e 51 casos em recém-nascidos com menos de 1 ano em Ribeirão Preto. Uma mesma criança pode ter sido computada mais de uma vez ao longo do ano.
A desnutrição pode ser causada por desde doenças e amamentação inadequada, até, necessidade de alimentação complementar especial (como leite Nan, que pode custar mais de R$ 100 a lata), de difícil acesso para famílias pobres, que precisam recorrer à Defensoria Pública ou Ministério Público para, judicialmente, obrigar a Prefeitura a custear a compra.
Questionada pelo Instituto Ribeirão 2030, a Prefeitura não informou se possui um levantamento de doenças relativas à má nutrição em Ribeirão Preto.
Além de acabar com a fome, o ODS 2 prevê, em suas linhas gerais, “alcançar a segurança alimentar, melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável”.
A gestora ambiental Mariah Campos explica que o termo segurança alimentar passou a ser utilizado a partir da 1ª Guerra Mundial, no contexto de um país dominar o outro por meio da produção de alimentos.
Atualmente o conceito abrange o “direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis”, conforme define a Lei Federal 11.346 de 2006, que instituiu o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.
O mais recente Plano Municipal de Saúde de Ribeirão, elaborado em 2017, prevê a criação de um Programa Municipal de Alimentação e Nutrição até 2021.
O município possui, desde o ano passado, o Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional, que tem o objetivo de “propor diretrizes para políticas e ações voltadas à Segurança Alimentar e Nutricional”.
Questionada pelo Instituto Ribeirão 2030, a Prefeitura não informou quais os programas de alimentação correta existem atualmente no município.
As políticas adequadas na área envolvem a qualificação e ampliação do quadro de funcionários do governo municipal.
De acordo com a folha de pagamento de janeiro de 2019, disponível no Portal da Transparência da Prefeitura, a Prefeitura possui dez nutricionistas, sendo que sete estão lotados na secretaria da Educação. Apenas dois atuam na área da Saúde e um na Assistência Social.
O plano municipal de Saúde prevê, nos próximo três anos, “ampliar o quadro de nutricionistas na rede municipal”. Não cita, porém, o número ideal de funcionários.
O município também falha no acompanhamento ativo da população vulnerável. Apenas sete em cada dez famílias beneficiárias do Bolsa Família em Ribeirão (e, portanto, em situação de pobreza) são monitoradas pela Secretaria da Saúde.
Na prática, isso significa que ao menos 2,3 mil famílias com vulnerabilidade confirmada não são observadas de perto pelo poder público local.
O geógrafo e pesquisador Melhem Adas, autor do livro “A fome: crise ou escândalo”, afirma que a fome “não é um fenômeno natural, mas sim um produto artificial criado por conjunturas econômicas defeituosas”.
Segundo ele, “são as conjunturas políticas e econômicas que não se dispõem a acabar com esse flagelo da humanidade”.
O pesquisador diz que “falta vontade humana” para solucionar a fome, além da necessidade da “criação de uma sociedade que elimine a pobreza e consequentemente a fome”.
Estudo divulgado em 2016 pelo departamento de Economia do campus Sorocaba da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) apontou que, à época, a produção nacional de alimentos era suficiente para todos os brasileiros. Entretanto, a desigualdade de renda e o desperdício ainda faziam com que 7,2 milhões de pessoas passassem fome no País.
Em entrevista à Agência Brasil, o coordenador do estudo, Danilo Rolim Dias de Aguiar, afirmou que “as pessoas de baixa renda acabam concorrendo com os animais, porque aquilo que poderia ser utilizado para alimentação humana vai para a alimentação animal” e, como resultado, “o preço dos produtos básicos sobe”, ficando cada vez menos acessíveis aos pobres.
Em setembro do ano passado, a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) divulgou que o número de pessoas passando fome no mundo aumentou pelo terceiro ano consecutivo, passando de 815 milhões de pessoas em 2016 para quase 821 milhões em 2017.
Os motivos variam desde guerras e mudanças climáticas até a vulnerabilidade econômica e social.
Segundo a ONU, entre um quarto e um terço dos alimentos produzidos anualmente para o consumo humano se perde ou é desperdiçado. A FAO calcula que esses alimentos seriam suficientes para alimentar dois bilhões de pessoas.
Embora subaproveitado pelo poder público, o Banco de Alimentos de Ribeirão Preto é uma iniciativa de sucesso na distribuição de comida e fomentação de uma dieta alimentar saudável.
Criado em 2003 e gerido pela Prefeitura, o Banco arrecada cerca de 33 toneladas ao mês de alimentos e distribui para cerca de 70 entidades sociais cadastradas, desde creches e asilos até associações de caridade.
Localizado às margens da avenida Bandeirantes, ele se sustenta principalmente pela produção de aproximadamente 100 associados da Associação dos Hortifrutigranjeiros. Cada um repassa cerca de 200 kg mensais ao Banco de Alimentos como pagamento do “aluguel” de um box no barracão que funciona como centro de comercialização para a população.
A ideia de receber os alimentos em pagamento foi de José Carlos da Cruz há 16 anos. Servidor municipal e um dos primeiros a trabalhar no local, atualmente ele é o coordenador do Banco de Alimentos – que conta, inclusive, com câmara fria para conservação dos produtos perecíveis.
Carlos entrega os alimentos para as entidades cadastradas seguindo uma escala. Cada uma recebe de acordo com o número de pessoas atendidas.
Além disso, o Banco funciona como uma central de armazenamento de doações (recebidas, por exemplo, em eventos esportivos ou musicais) e de cestas básicas entregues em situações emergenciais, como para vítimas de enchentes.
O galpão conta desde 2011 com uma Cozinha de Processamento de Alimentos já equipada, custeada pelo Governo Federal. Até 2016, ela funcionava com funcionários cortando alimentos para as entidades, produzindo molho de tomate, extraindo polpa das frutas, entre outros.
Entretanto, o local atualmente está fechado e sem uso. Equipamentos como fogão industrial e máquina de embalagem à vácuo estão parados.
O município conta, também, com uma unidade do Bom Prato, que serve 1,7 mil refeições diárias a R$ 1, com valor subsidiado pelo governo estadual.
Guido Desinde Filho, secretário de Assistência Social, pontua que os Centros de Referência e o Cetren (abrigo de passagem para migrantes e pessoas em situação de rua) também fornecem alimentação aos usuários.
Todo mês, a entidade Resolvi Mudar, formada por cidadãos voluntários, distribui 1,5 mil refeições para famílias vulneráveis e pessoas em situação de rua em Ribeirão.
“Nosso trabalho hoje é fundamental, pois chegamos onde a Prefeitura não chega. Principalmente onde estão esquecidos pelo poder público, como comunidades, pois não dá conta de cuidar de tantas pessoas em situação de vulnerabilidade”, afirma Paula.
Ela diz que, de 2013 para cá, a vulnerabilidade se agravou no município. “Muita gente perdeu o emprego com a crise, famílias que moravam de aluguel foram morar em comunidades. A pobreza aumentou demais”.
A Prefeitura não informou quantas entidades possui, cadastradas, atendendo a pessoas em situação de vulnerabilidade.
Voltar para os diagnósticos locais© 2021 Instituto Ribeirão 2030. Todos os direitos reservados | Desenvolvido por Inova House